Considerações sobre o filme Quando um homem ama uma mulher

Quando um homem ama uma mulher (When a man loves a woman)

Diretor Jan Bannaberg, 1994, EUA

 Sinopse: Michael Green é um piloto de avião apaixonado por sua esposa Alice. Quando se casaram ela tinha uma filha, Jessica e após o casamento tiveram Casey, respectivamente de 8 anos e 3 anos. O casal é apaixonado e procura fazer de tudo para construir uma vida agradável para eles e para as filhas. Apesar de Alice ser uma mãe dedicada, é alcoólatra e com o tempo não consegue mais disfarçar seu quadro e o aumento gradativo da bebida. Começa a descontrolar-se com as filhas, a tornar-se negligente e irresponsável.  Michael esforça-se por não perceber, até que um dia Alice chega em casa alcoolizada, toma barbitúricos, bate em Jessica e vai para o banho – então desmaia e cai derrubando o box do banheiro. Jessica apavorada liga para Michael que está em outro pais e precisa voltar. Após a hospitalização Alice é internada em uma clinica para tratamento e reabilitação, ficando longe das filhas e a relação com o marido sofre um abalo.

            O recorte aqui apresentado toma por base a Teoria Sistêmica que enfatiza a natureza relacional e contextual do comportamento humano, considerando que o sintoma de um dos membros reflete a disfunção familiar. (Schenker; Minayo, 2004).

            Minuchin (2008) define a  família como um “… grupo de pessoas conectadas por emoções e/ou sangue, que viveu junto o tempo suficiente para ter desenvolvido padrões de interação e histórias que justificam e explicam esses padrões de interação. Em suas interações padronizadas, os membros da família constroem uns aos outros – pertencimento e individualização”

            As relações familiares são responsáveis, entre outras coisas,  pela nutrição emocional de seus membros, podendo funcionar como Fator de Proteção ou de Risco, dependendo de como as funções básicas da família são desenvolvidas, dos fatores externos e da forma como as famílias enfrentam as adversidades.

            Vejamos esses aspecto na família de dependentes químico, considerando-se que o comportamento parental e o funcionamento familiar tem relação direta com o desenvolvimento de problemas associados ao abuso de álcool e drogas entre crianças e adolescentes.

            O constante monitoramento, disciplina e valores familiares bem transmitidos favorecem os fatores de proteção para crianças e adolescentes; entre as mulheres, o casamento pode ser outro fator protetor, desde que o parceiro não seja também dependente ou se torne codependente; a maternidade pode diminuir ou cessar o consumo; porém, a perda do parceiro pode aumentar o consumo, principalmente para mulheres.

            No filme, pode-se detectar alguns Fatores de Risco –  A família de origem de Alice aparece como coautora do início do uso de álcool na infância (primeira cerveja aos 9 anos de idade). O pai alcoólatra e a mãe muito critica e exigente para com A., constantemente comparada com o pai, a quem a mãe desvalorizava. Na adolescência o uso persistiu, não se sabe em qual extensão. Em geral, inicialmente as famílias tendem a não perceber o consumo como problema, sendo que esse reconhecimento ocorre ao longo do tempo.

            No período crítico da infância e adolescência, essa relação negativa e competitiva com a mãe e  a identificação com um pai desvalorizado, reforçou a busca do álcool como forma de enfrentamento das situações, com prejuízo no desenvolvimento das competências pessoais, aquisições para atuar e tomar decisões, desenvolvimento de uma auto estima positiva.

            Não ficam explicitados os motivos da separação no primeiro casamento. A família atual é reconstituída, de classe média, contemporânea, ela educadora e ele comandante de voo, desse casamento nasceu Casey (4 anos). Não fica claro se existe uma rede de amigos; nas atividades de lazer aparece somente o casal sempre bebendo algo, o que também faz parte da cultura norte-americana.

            Com o tempo o uso do álcool foi se tornado abusivo por parte de A, que passou a apresentar comportamentos inadequados, constrangedores – M. a acompanhava nos eventos;  as comemorações do casal ocorriam sempre regada a bebidas. No início ele achava que ela ficava engraçada quando bebia, com o tempo foi ficando apreensivo mas não comentava para evitar brigas.

            Em torno dos 30 anos A. passou a ser dependente de álcool, não conseguindo iniciar as atividades sem beber, bebia por sentir-se só, deprimida (dependência psíquica).  Associava seu estado ao fato de M. ter começado a fazer escalas internacionais e a ficar mais tempo fora da cidade. Começou a apresentar sinais de abstinência, bebia logo pela manhã, apresentava tremores, sua tolerância ao álcool foi se tornando maior. Dirigia embriagada com as filhas no carro; apresentava amnésias episódicas; negligenciava a família (marido e filhas) e seus compromissos.

            Parece que A. reproduzia na família nuclear, os rituais e mitos de sua família de origem, como a forma de enfrentar a dor. Recorria à família de origem quando não tinha com quem deixar as crianças, perpetuando a relação negativa com uma mãe que a desvalorizava, criticava, comparando-a com o pai.Após episódio em que é hospitalizada por ingestão de álcool e aspirina, com posterior desmaio, ocorreu a  primeira internação para desintoxicação.

            Considera-se a dependência química como um processo que possui uma gênese tridimensional: a substância; o individuo com sua singularidade psíquica e biológica; o contexto sociocultural.  No filme, o contato social externo é uma colega de trabalho de A., que a convida para sair após o expediente e beber algo – tendência a um rede social que tem por foco o incentivo ao beber para poder falar da dor e da vida.         Parece haver um isolamento do casal em relação às atividades de lazer, o que é uma das características da família com dependente químico, com o afastamento de amigos, familiares.

            Conforme a preocupação aumenta, familiares tendem a desenvolver meios de enfrentamento – meios que podem ajudar ou manter o consumo problemático.Estes aspectos são modeladores de papéis e regras familiares que afetam e influenciam diretamente cada indivíduo e seu sistema. Tanto o dependente químico quanto a família passam por estágios de mudança no reconhecimento e enfrentamento da problemática.

            No estágio de Pré-contemplação – antes da internação A. não percebia possuir problemas com o uso de álcool, o que também era negado pelo marido. Nos  programas do casal sempre o uso das bebidas estavam presentes, ele por vezes tentava comentar o excesso, mas ela o interrompia com uma atitude sedutora (sua forma de enfrentamento). O marido, como codependente, achava que a esposa ficava divertida quando bebia, não percebendo ou negando as consequências do uso.

            No estágio de Contemplação, que para Alice alterna-se com o de Pré-Contemplação, por vezes prometia que diminuiria as doses, mas não cumpria. Por outro lado, o marido começou a perceber o aumento da ingestão de bebidas por A, as mudanças em seu comportamento em relação a ele e às filhas, sua negligência com horários, mas tendia a buscar saídas (como viagens)  para fugir do problema.

            Um dia A. chegou em casa muito embriagada, tratou a filha de forma violenta, tomou barbitúricos e desmaiou no banheiro, sendo socorrida pela filha que ligou para M. Alice então fala de suas dificuldades e de sua dependência do álcool, sendo necessária  a internação para desintoxicação. Parece que M. não estava consciente da complexidade da problemática, apoiou a internação, mas não conseguia perceber as reais dificuldades de A, do casal e da família. Sentia-se ambivalente e excluído

            Durante a internação Alice lentamente passa do estágio de Contemplação para o de Preparação.  De início mostrava-se ambivalente na avaliação da necessidade de internação, chorava ao falar com o marido, relutava em aceitar algumas regras, mas culpava-se pela forma como estava lidando com as filhas, começando a se envolver com o grupo, com as atividades e a se conscientizar de sua doença, passando para o estágio de Preparação, no qual procurava novas formas de resolução das situações de vida, com o objetivo de restaurar sua autoestima e desenvolver condições de lidar com a solidão, com a depressão, melhorando sua forma de comunicação e fortalecendo sua autonomia.

            Após a alta permaneceu inserida na rede recém construída, participando do AA, ampliando sua rede social  e se  mantendo abstênica por 180 dias ( Estágio de Ação -Manutenção)

            As mudanças de A. como dizer o que sentia, enfrentar os problemas e discuti-los, ampliar sua rede de amigos, provocou uma quebra na homeostase familiar, que girava em torno do uso do álcool e das inconsequências de A. Agora ela não mais permitia que o esposo tirasse sua autoridade em relação às filhas e a tratasse como uma criança.  Apesar de amá-lo, precisava de um espaço para se tornar adulta, segura, autônoma, para poder estabelecer um outro tipo de relação conjugal, onde as situações pudessem ser discutidas e enfrentadas de forma funcional.

            Michael apresentava dificuldade em aceitar as mudanças de A durante e após  a internação,  mostrando-se relutante quanto a Terapia de Casal e ao encaminhamento ao Alanon. Frequentou por 4 meses o grupo e entrou em um Estágio de Preparação (sua primeira fala ao grupo, expressando o que aprendeu e modificou e percebendo alguns motivos de sua separação).

            A codependência é uma condição específica, caracterizada por preocupação e dependência extremas em relação a uma pessoa ou coisa, caracterizando-se como uma doença relacional. A medida que A. vai se fortalecendo e se colocando de forma diferente na relação conjugal, ampliando sua rede de convivência, M. vai se mostrando mais fragilizado, carente, depressivo, inseguro. A homeostase familiar foi quebrada, exigindo novos posicionamentos, regras e assunção de papéis e também amadurecimento emocional e novos modelos de comunicação entre seus membros.

            Á medida que Alice  reorganizava sua vida, sua relação com as filhas e consigo mesma, Michael vai se tornando mais infeliz, com dificuldade de sair do papel de cuidador/condutor, de separar o que era próprio de seu papel profissional e o que era agora esperado nesse novo modelo de relação conjugal e familiar.

            Os estágios pelos quais a família pode passar pela influencia do uso de álcool e  por um ou mais de seus membros, são descritos por Krupnick (in Paya e Figlie, 2010.):

1. Família – negação do uso e das consequências, embora existam desentendimentos  a questão do álcool não é discutida (ex. inadequações, reação ao alarme do carro estacionado, ficar no meio da noite trancada fora de casa…).

 2. Cumplicidade entre as  filhas, a empregada – percebem, sofrem as consequências do abuso de álcool de A, mas não comentam com M., instaurando-se segredos, que só são revelados, aos poucos, após a internação de A.

3. Desorganização familiar, com inversão dos papéis e funções. Todos vão assumido os papéis e responsabilidades de A, inclusive o marido, como forma de minimizar o problema. J (6 anos) parece muito amadurecida para a idade. Falha nas práticas educativas e contradição entre as ordens das figuras parentais

4. Exaustão emocional – após a internação, M. sente-se excluído da relação com A, com ciúmes de suas novas amizades; os conflitos vem a tona e o casal se separa – desestruturação familiar

Esse foi o meu recorte que pode ser complementado por sua experiência.

 SchenKer, M; Minayo,M.C.S. A importância da família no tratamento do uso abusivo de drogas: uma revisão da literatura. Cad. Saúde Publica,20(3),649-659, 2004.

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